Compartilhar no whatsapp
Compartilhar no facebook
Compartilhar no pinterest
Compartilhar no twitter
Compartilhar no email

Novas narrativas: o humano na dinâmica da comunicação

A centralidade (ou não) do ser humano na evolução/dinâmica da comunicação, na contemporaneidade leva-nos a perguntas como: estamos cada vez mais dependentes da tecnologia? Estaríamos vivendo uma “deslocalização” do ser humano, cada vez mais “tecnologizado”? Há possibilidade de a técnica contribuir para a humanização? Nossa consideração sobre o humano na dinâmica da...

A centralidade (ou não) do ser humano na evolução/dinâmica da comunicação, na contemporaneidade leva-nos a perguntas como: estamos cada vez mais dependentes da tecnologia? Estaríamos vivendo uma “deslocalização” do ser humano, cada vez mais “tecnologizado”? Há possibilidade de a técnica contribuir para a humanização?

Nossa consideração sobre o humano na dinâmica da comunicação, depois de uma descrição abundante e bem pontual[1], focada na temática proposta para o Seminário, aborda dois pontos que observamos como relevantes (um “chamado”!)  para uma reflexão atual, embora sem respostas conclusivas, apesar de sua exigência num mundo sempre mais tecnologizado e, por isso, com desafios crescentes: novas narrativas e o pensamento/reflexão da Igreja.

1–  Situamo-nos dentro de um contexto de novas narrativas, próprias de nossa época, século XXI, em que as “narrativas” são novas, por vezes confusas, modificadas. Entendemos “narrativas”, aqui, a partir de uma noção ampla que o pesquisador George Gerbner compreende como “contar histórias”.  A palavra  narrativa, então, “se refere a todas as histórias que contamos…Mas contar uma história, mais do que simplesmente relatar um fato, é uma operação complexa… está ligado a um sentido de compartilhar algo com outras pessoas. Dividir o que vivemos, compartilhar experiências e vivências…” (MARTINO/MARQUES, 2018, p.45). De acordo com Manuel Castells[2] “A presença na rede ou a ausência dela e a dinâmica de cada rede em relação às outras são fontes cruciais de dominação e transformação de nossa sociedade” (são narrativas). Naturalmente que as narrativas têm uma ligação, são manifestações, expressões de grupos e indivíduos que a narram. Portanto, segundo Martino/Marques, toda narrativa traz, as marcas do contexto em que é produzida (p. 45). Nós narramos com base no que sabemos, isto é, nós narramos (nos relacionamos: dizemos, expressamos, partilhamos, aceitamos, rejeitamos) vinculados “diretamente às condições que temos de conhecer a realidade. E tais condições formam, em nossa mente, o jeito como entendemos  o mundo e o explicamos aos outros” (p. 45). Por isso que as narrativas mudam, se transformam. Por exemplo:

Em algum momento, milhares de anos atrás, alguém muito parecido com a gente resolveu contar para todo mundo como tinha sido a caçada naquele dia e pintou sua experiência na parede de uma caverna. Mais ou menos como fazemos hoje ao postar coisas em redes sociais. A diferença é que os detalhes de nossa vida cotidiana não devem sobreviver por muito tempo no espaço digital, ao contrário das pinturas rupestres. Desde então não paramos de contar histórias, de deixar registrado para o presente e para o futuro o que acontece conosco. (Martino/ Marques, 2018, p.44)

Ao admitir que vivemos um contexto de “novas narrativas” (e que estas se modificam, se transformam conforme mudam os contextos!), os autores Luis Sá Martino e Angela Marques enfatizam que “em épocas de conexões virtuais imediatas, economia global e tecnologia sem limites”, vale a pergunta: o que é ser alguém?[3] (…) e, talvez pareça ser ingênuo ou desnecessário”. Segundo nossos autores (p. 31), é preciso retomar essa questão, justamente porque vivemos em um tempo conturbado  em que as conexões virtuais, a economia, a política mundiais e, especialmente, os avanços, as dinâmicas das tecnologias de comunicação… colocam o ser humano diante de novos desafios de convivência, de repensamento de conceitos, de novas narrativas em todos os campos antropológico, sociológico, religioso. E, para essa convivência existir, parece importante voltar à questão “o que é ser alguém”.

A pergunta pode parecer óbvia e, pela sua aparente simplicidade, pode também nos enganar. Entretanto, “várias ações do nosso cotidiano dependem de como respondemos a essa pergunta: o que é ser alguém? (idem, p. 32).

Certamente, isso tem a ver com a noção de “pessoa” (não a única!) para definir o ser humano. No cotidiano, há concorrência na definição de pessoa, “carregadas de sentidos que levam a outras interpretações do que é ser alguém”. Vivemos mesmo sem refletir e “damos por descontado”  (to take for granted!). Vejamos, por exemplo, o que os nossos autores já citados, nos dizem:

Para a Publicidade, você é um target a ser atingido; para a Receita Federal, um contribuinte a ser tributado; em algumas empresas, você é um recurso a ser administrado;  perante a Consitutição, um cidadão com direitos e deveres; para qualquer loja, um cliente a atender; para o mercado, um consumidor.

E uma série de números – RG, CPF, senhas e registros em bancos de dados. Misturando em uma frase só, os filósofos Vilém Flussr e Pierre-Joseph Proudhon, e, completando com Raul Seixas, ser alguém é também ser codificado, conectado, plugado, mapeado, digitalizado, twittado, blogado, perfilado, guardado em bits, pixelizado e significado, se quiser existir. (pp. 32-33)

Mesmo que “o que é ser alguém” passa pelo conceito de pessoa que varia, também, com as épocas…[4] aqui abraçamos o que o pensador francês, o antropólogo Edgar Morin propõe: “que o humano seja compreendido além de sua dimensão racional, mas também em termos afetivos, emocionais, sensíveis e até mesmo insanos—ao lado do Homo Sapiens aparece o Homo demens”.[5]

A grande relevância que se coloca, a esta altura, sobre a pergunta “o que é ser alguém?”, é que a sua narrativa brota das suas ações do cotidiano, situada em determinado contexto, vão revelar seus valores, suas crenças e critérios éticos  tanto nas ações mais simples, tanto quanto nas grandes decisões da vida. Pensemos, então, que “tanto as grandes quanto as pequenas decisões são orientadas por valores, isto é, por critérios usados para julgar o que se deve fazer e avaliar os resultados das ações realizadas”.[6]

Mas quais são os valores que orientam suas escolhas? Pensemos no mundo digital.  Muita coisa não depende de nós, mas MUITO, na comunicação em geral… pode ter a nossa participação com os nossos valores presentes. Desenvolver o senso crítico, parafraseando Yuval Noah Harari, que, em recente Conferência em São Paulo e falando sobre o contexto atual, sobretudo da informação, disse que é preciso formar para analisar das fontes, ou seja, formar (educar!) para a análise (senso crítico)!

2- Um segundo ponto, o ser humano na dinâmica da comunicação, hoje, passa por uma revolução inédita, mais precisamente a revolução digital (4ª revolução) cujas características principais são a velocidade e o desenvolvimento das tecnologias de modo acelerado e vertiginoso. Levantam-se então, desafios para a humanidade atual e o seu futuro. A rapidez com que os processos tecnológicos avançam e a sua aplicação já é realidade em todos os setores da vida, desde os sistemas econômico-financeiro às empresas de pesquisa; desde a informação à educação; da saúde à família. A questão aqui, não é somente sobre as modalidades de desenvolvimento das diversas atividades humanas, mas é que ENVOLVE também, “modificando profundamente o seu sentido (o das atividades humanas), a consciência pessoal e as relações inter-humanas” diz o teólogo italiano Giannino Piana,[7]

A Igreja, na pessoa do papa Francisco, ao receber em audiência os participantes da plenária da Pontifícia Academia para a Vida, reunidos em Roma para refletir sobre o tema “Roboética. Pessoas, máquinas e saúde” – saúda “os extraordinários recursos” que são postos à disposição da humanidade pela pesquisa científica e tecnológica. Mas adverte: “A atual evolução da capacidade técnica produz um encantamento perigoso: ao invés de entregar à vida humana os instrumentos que melhoram o seu cuidado, corre-se o risco de entregar a vida à lógica dos dispositivos que decidem o seu valor”. E, ainda, que “a Igreja é chamada a relançar vigorosamente o humanismo da vida que surge da paixão de Deus pela criatura humana”.[8]

Ainda,  na carta Humana Communitas, que enviou à Pontifícia Academia para a Vida, por ocasião do seu 25º aniversário, referindo-se às tecnologias, Francisco afirma:

Uma ulterior frente sobre a qual é necessário refletir é a das novas tecnologias hoje definidas “emergentes e convergentes”. Elas incluem as tecnologias da informação e da comunicação, as biotecnologias, as nanotecnologias, a robótica. Recorrendo aos resultados obtidos pela física, pela genética e pelas neurociências, assim como à capacidade de cálculo de máquinas cada vez mais potentes, hoje é possível intervir muito profundamente na matéria viva. Também o corpo humano é suscetível de tais intervenções que podem modificar não só as suas funções e prestações, mas até as suas modalidades de relação, no plano pessoal e social, expondo-o cada vez mais às lógicas de mercado. Portanto, antes de tudo é preciso compreender as transformações epocais que se anunciam nestas novas fronteiras, para identificar como as orientar ao serviço da pessoa humana, respeitando e promovendo a sua intrínseca dignidade.[9]

Discorrendo sobre o assunto e não negando as funções efetivas  que o desenvolvimento das novas tecnologias oferecem, baseadas por exemplo, em Inteligência Artificial,  Francisco diz que “o risco de o ser humano ser tecnologizado em vez de a técnica ser humanizada”: já é possível ver isso agora, quando “a ‘máquinas inteligentes’ são apressadamente atribuídas capacidades que são propriamente humanas”. O Papa chama a atenção para a necessidade de  “compreender melhor o que significam, nesse contexto, a inteligência, a consciência, a emotividade, a intencionalidade afetiva e a autonomia do agir moral”.

Francisco reconhece as extraordinárias potencialidades das novas descobertas que poderão irradiar os seus benefícios para cada pessoa e para a humanidade inteira. E diz que o primeiro passo é começar a compreender a tecnologia não como uma força “estranha e hostil” ao ser humano, mas como “produto da sua engenhosidade, através do qual ele supre as exigências do viver para si e para os outros”. A tecnologia deveria aparecer como “uma modalidade especificamente humana de habitar o mundo”, sublinha o pontífice.[10]

O papa Francisco levanta também a existência de um “dramático paradoxo”: “Precisamente quando a humanidade possui as capacidades científicas e técnicas para obter um bem-estar igualmente difundido, de acordo com o mandato de Deus, observamos um acirramento dos conflitos e um crescimento das desigualdades”. Afirma Francisco que, por um lado o desenvolvimento tecnológico “nos permitiu resolver problemas até poucos anos atrás intransponíveis”, mas, por outro, emergem “dificuldades e ameaças às vezes mais insidiosas do que as anteriores”. E continua Francisco

“O ‘poder-fazer’ corre o risco de obscurecer quem faz e por que se faz. O sistema tecnocrático baseado no critério da eficiência não responde às interrogações mais profundas que o ser humano se faz; e se, por um lado, não é possível abrir mão dos seus recursos, por outro, ele impõe a sua lógica a quem os usa”.[11]

Nesta conjuntura de preocupações, discussões sobre “o ser humano na dinâmica da comunicação”, importante registrar que, também, e além da Academia Pro Vida levar adiante a reflexão, discussão sobre a temática, no início este ano (2019), e diante do rápido desenvolvimento das novas tecnologias baseadas em Inteligência Artificial, a Comissão dos Episcopados da Comunidade Europeia (COMECE)  publicou a reflexão “Robotização da vida: ética em vista de novos desafios”,[12] onde reafirma o primado da pessoa humana na relação entre pessoas humanas e robôs.

Enquanto a discussão sobre Inteligência artificial está em andamento (Europa), o Grupo Europeu de Ética em Ciência e Novas Tecnologias publicou o primeiro esboço das “Diretrizes deontológicas para uma Inteligência Artificial digna de confiança”, a COMECE, então,  analisou os impactos da robotização na pessoa humana e na sociedade como um todo e elaborou sua reflexão como um passo ético que pode moldar a vida comunitária na nossa sociedade complexa e globalizada, na qual os atores estão cada vez mais interconectados.

Concluindo

Os dois pontos focalizados ao longo deste pequeno artigo se colocam como provocações para que se continue a aprofundar e refletir sobre as novas narrativas que nos envolvem, e que estão continuamente modificando nossas relações em várias dimensões  de nossa cotidianidade. Por isso, sempre atual a pergunta “o que é ser alguém?”

O pensamento da Igreja, expresso na pessoa do papa Francisco, e o incentivo para que se  busque entender e refletir sobre a lógica por detrás dos avanços tecnológicos que nos surpreendem frequentemente, é o de reafirmar o primado do humano, com base no reconhecimento da dignidade humana de cada pessoa. Seja  na consideração da Inteligência Artificial, ou da robotização, entram aspectos éticos com necessidade de serem revisitados, talvez repensados. Afirma Francisco que “os dispositivos artificiais que simulam capacidades humanas, na realidade, são desprovidos de qualidade humana”. E acrescenta “É preciso levar isso em conta para orientar a regulamentação do seu emprego, e a própria pesquisa, em direção a uma interação construtiva e justa entre os seres humanos e as mais recentes versões de máquinas” que se difundem visivelmente no mundo e estão transformando o cenário da existência humana.

Ainda, na  encíclica Laudato Si (2015) , Francisco adverte que “A inteligência artificial, robótica e outras inovações tecnológicas devem ser usadas a fim de contribuir para o serviço da humanidade e para a proteção de nossa Casa comum, e não para o exato oposto, como infelizmente, preveem algumas estimativas. A dignidade inerente de todo ser humano deve estar firmemente colocada no centro de nossa reflexão e ação”.[13]

Para a Igreja, não se trata de condenar, mas de “compreender melhor o que significam, nesse contexto, a inteligência, a consciência, a emotividade, a intencionalidade afetiva e a autonomia do agir moral”.[14]

 

Referências

FRANCISCO. Disponível em http://www.ihu.unisinos.br/586976-papa-hoje-existe-o-risco-de-dar-vida-a-logica-das-maquinas-e-dos-dispositivos . Acesso 26/02/2019

___________Carta encíclica Laudato si’ sobre o cuidado da casa comum. Vatican.va, Cidade do Vaticano, 24 mai. 2015a.  Disponível em: <https://bit.ly/1Lhax37>. Acesso em: 25 out. 2019.

INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS – Disponível em http://www.ihu.unisinos.br/586489-bispos-europeus-publicam-reflexao-sobre-a-robotizacao-da-vida, 11 fevereiro 2019. Acesso 1 de março 2019

MARTINO, Luís M.S./MARQUES, Ângela C.S. Ética, mídia e comunicação. São Paulo: Summus Editorial, 2018.

VATICAN.VA. Humana Communitas. Disponível em http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/letters/2019/documents/papa-francesco_20190106_lettera-accademia-vita.html. Acesso 26/02/2019

___________________________________________

[1] Joana T. Puntel é doutora em Ciências da Comunicação (USP) e foi debatedora na mesa redonda, falando depois da Conferência de Moisés Sbardelotto durante Seminário realizado pelo Sepac, em setembro de 2019.

[2] CASTELLS, M. A sociedade em rede. A era da informação: economia, sociedade e Cultura. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p.565.

[3] O grifo é nosso.

[4] O conceito de “pessoa” segundo as diferentes épocas não será objeto de nossa consideração neste texto, mas pode ser encontrado, brevemente nos autores MARTINO, Luís M Sá/ MARQUES, Angela C S. Ética, mídia e comunicação: relações sociais em um mundo conectado. São Paulo: Summus Editorial, 2018. PP. 34-36

[5] (citado em MARTINO/MARQUES, p. 36).

[6] Dizem os autores Martino/Marques que “falar em valores pode parecer ingênuo, anacrônico ou até mesmo de um moralismo fora de lugar no mundo contemporâneo. As disputas de poder, seja na política, nas organizações ou mesmo na família, os jogos de interesse nos quais tudo é feito com segundas intenções, o individualismo e a competitividade do hipercapitalismo parecem não deixar espaço para que se fale de valores ou ética” (p. 53).

[7] Disponível em http://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/581458-inteligencia-artificial-e-pos-humanismo-artigo-de-giannino-piana, 03 Agosto 2018.   Acesso 26/02/2019.

[8] Disponível em  http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/letters/2019/documents/papa-francesco_20190106_lettera-accademia-vita.html. Acesso em 26 fevereiro 2019

[9] Disponível em  http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/letters/2019/documents/papa-francesco_20190106_lettera-accademia-vita.html. Acesso 26/02/2019

[10] Disponível em http://www.ihu.unisinos.br/586976-papa-hoje-existe-o-risco-de-dar-vida-a-logica-das-maquinas-e-dos-dispositivos.  Acesso 26/02/2019

[11] Ibid.

[12] Disponível em http://www.ihu.unisinos.br/586489-bispos-europeus-publicam-reflexao-sobre-a-robotizacao-da-vida, 11 fevereiro 2019. Acesso 1 de março 2019

[13] Carta encíclica Laudato si’ sobre o cuidado da casa comum. Vatican.va, Cidade do Vaticano, 24 mai. 2015a.  Disponível em: <https://bit.ly/1Lhax37>. Acesso em: 25 out. 2019.

[14] Disponível em http://www.ihu.unisinos.br/586976-papa-hoje-existe-o-risco-de-dar-vida-a-logica-das-maquinas-e-dos-dispositivos Acesso 26/02/2019